Por Gustavo Tuller
Especialista em Processo Disciplinar na OAB

A ofensa à Ampla Defesa e Contraditório como causa de anulação do processo administrativo

Todo e qualquer processo sancionatório deve oportunizar aos acusados o exercício de garantias basilares do Ordenamento, como a Ampla Defesa, o Contraditório, o Devido Processo Legal, a Igualdade (isonomia), a vedação à dupla penalização (non bis in idem), o conhecimento sobre os fatos imputados (de forma estrita), a imparcialidade do julgador, a vedação a tribunal de exceção, ao anonimato, etc.

Os Tribunais de Ética e Câmaras de Disciplina pátrios são compostos por advogados que, nesta função que lhes é atípica, por vezes olvidam-se dos parâmetros que sintonizam os julgados com estas garantias. É dizer: Por vezes, a tentativa de demonstrar efetividade e celeridade no exercício do jus puniendi disciplinar acaba por tolher garantias fundamentais do acusado e ensejar a nulidade do processo.

A grande maioria das nulidades processuais verificadas em processos disciplinares perante a OAB poderia ser evitada a partir de uma simples consulta à jurisprudência do Conselho Federal da instituição. Deve-se lembrar que um posicionamento minoritário não se firmará com base na repetição, tão somente repercutirá em recursos repetitivos e no reconhecimento, pelas instâncias superiores (ou pela autoridade judiciária), de nulidades decorrentes do tolhimento de garantias.

Neste contexto, uma das mais frequentes causas de anulação de processos disciplinares, em trâmite na OAB, diz respeito ao cerceamento da defesa.

A defesa em processo sancionatório deve ser ampla. Há que ser lembrado que o resultado prático do processo é, justamente, impor algum tipo de sanção ao acusado e que a penalização futura já lhe bastará à correção, não se podendo cogitar haver dupla penalização: uma no curso de um processo arbitrário e tirano, como é quando ausentes as garantias do acusado, e outra ao final do processo, por meio da sanção propriamente dita.

Já no despacho de admissibilidade da representação, decisão que se assemelha ao recebimento da denúncia na esfera processual penal, há que se oportunizar ao defendido a ciência plena, estrita, certa e determinada quanto ao objeto da acusação. É dizer: não há ampla defesa se o defendido não conhecer os limites exatos da acusação que lhe é feita, pois imputação certa não se coaduna com meias palavras, verdades tácitas ou presunções, em especial porque ao processo disciplinar da OAB aplicam-se, subsidiariamente, as normas de direito processual penal comum (art. 68, Lei 8.906/1994).

O Conselho Federal da OAB firmou, há muito, o entendimento de que o advogado representado disciplinarmente defende-se dos fatos que lhe são atribuídos, independente da capitulação a eles atribuída no momento do julgamento:

RECURSO N. 49.0000.2018.007402-3/SCA-PTU. Recte: K.M.S.F. (Adv: Ian Amorim de Souza OAB/AL 9655). Recdo: Conselho Seccional da OAB/Alagoas. Relator: Conselheiro Federal Carlos Roberto Siqueira Castro (RJ). EMENTA N. 197/2018/SCA-PTU. Recurso ao Conselho Federal da OAB contra acórdão não unânime da Seccional alagoana. Manter conduta incompatível com a advocacia. Art. 34, inciso XXV, do EAOAB. Não caracterização. Impossibilidade de nova capitulação, em atenção do princípio do non reformatio in pejus. Absolvição que se impõe. 1) O Conselho Federal da OAB tem entendimento consolidado no sentido de que a parte representada se defende dos fatos descritos na peça de representação e não da definição jurídica que aos mesmos é atribuída, seja na peça inicial, no curso da instrução processual ou em segunda instância, conforme assim possibilita o art. 383 do Código de Processo Penal, aplicado subsidiariamente ao processo disciplinar por força do art. 68 do EAOAB. 2) A alteração da capitulação dos fatos em sede recursal, todavia, é limitada, por força do que determina o art. 617 do Código de Processo Penal, sob pena de violação ao princípio do non reformatio in pejus. 3) Recurso que se conhece e dá provimento, para absolver o representado. Acórdão: Vistos, relatados e discutidos os autos do processo em referência, acordam os membros da Primeira Turma da Segunda Câmara do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, observado o quorum exigido no art. 92 do Regulamento Geral, por unanimidade, em dar provimento ao recurso, nos termos do voto do Relator. Impedido de votar o representante da OAB/Alagoas. Brasília, 1º de outubro de 2018. Carlos Roberto Siqueira Castro, Presidente e Relator. (DOU, S. 1, 10.10.2018, p. 97).

Veja-se que o entendimento em tela, como posto, já retira do acusado parcela da segurança jurídica, ao permitir margem de volatilidade quanto à capitulação jurídica a ser atribuída aos fatos descritos pela acusação. Diante de uma CAPITULAÇÃO JURÍDICA flutuante, a única garantia remanescente ao acusado, no assunto, é o conhecimento quanto às CONDUTAS que lhe são atribuídas, nos termos do mandamento expedido pelo Conselho Federal.

Desta feita, por óbvio, uma decisão de admissibilidade que não descreve, especificamente, quais condutas do representado estão sob análise infracional, por certo, cerceia-lhe a defesa. Da mesma maneira o faz uma decisão de admissibilidade que se limite a descrever a capitulação jurídica atribuída a fatos que não descreveu.

Prosseguindo na marcha processual, se o representado se tornar revel, defensor dativo deverá ser nomeado para assisti-lo, pois não é lícito que em processo sancionatório este permaneça indefeso (art. 59, § 2º, Código de Ética e Disciplina). Ademais, a colheita de prova oral deverá, igualmente, ser acompanhada por defensor nomeado para o ato, sob pena de nulidade:

Ementa 103/2002/SCA. O não comparecimento do defensor dativo à audiência em que é ouvido o representante da empresa interessada, a requerimento dessa, assim como a não apresentação, pelo defensor, de alegações finais, constituem nulidades relativas, no processo disciplinar. Hipótese em que de tais omissões não resultou prejuízo à defesa ou à apuração da verdade, porquanto o acusado, ingressando no processo, mediante procurador, antes da sessão de julgamento do TED, nesta fez sustentação oral, considerando-se, assim, suprida a falta das alegações finais, especialmente porque, em nenhum momento, o acusado negou a responsabilidade que lhe era imputada, limitando-se, nos recursos interpostos, a argüir questões processuais. Recurso de que se conhece, mas a que se nega provimento, para confirmar a suspensão aplicada, dando o acusado como incurso nos incisos XX e XXI, do Estatuto. (Recurso nº 0255/2002/SCA-SC. Relator: Conselheiro Paulo Roberto de Gouvêa Medina (MG), julgamento: 14.10.2002, por unanimidade, DJ 05.11.2002, p. 415, S1)

Em sequência, quando na defesa prévia é requerida a produção de determinado meio de prova, sua apreciação é obrigatória pelo Relator que acompanha a instrução, sob pena de patente cerceamento de defesa. Não apenas pela ausência de deferimento da prova, mas porque, e em especial, o seu indeferimento na hipótese seria tácito e desprovido de fundamentação que amparasse a negativa, em afronta à formula prevista pelo art. 59, § 6º do Código de Ética e Disciplina:

§ 6º O relator somente indeferirá a produção de determinado meio de prova quando esse for ilícito, impertinente, desnecessário ou protelatório, devendo fazê-lo fundamentadamente.

É que ao acusado devem ser propiciadas as mais amplas possibilidades de, querendo, rebater acusações que lhe são feitas, e, da mesma maneira, valer-se de argumentos para se contrapor as decisões formuladas durante o processo acusatório. Compreender que toda e qualquer privação ao indivíduo deve vir amparada em justo motivo, em razoabilidade, não é tarefa extraordinária. Vale, nesse sentido, destacar as sábias palavras da doutrina de Luiz Flávio Gomes, in verbis:

“De nada adianta estabelecer limites formais à atuação estatal, se ela não conta com barreiras no precioso momento da formulação dessas mesmas regras jurídicas, primordialmente as que se destinam a restringir a liberdade das pessoas. Justo ou devido, portanto, deve ser não só o processo, senão também o próprio procedimento de elaboração da lei [ou de qualquer outro ato normativo], seja no aspecto formal, seja no substancial (material), porque o legislador não pode transformar em ‘processo devido’ o que é, por natureza, arbitrário, desproporcional, indevido. (…) Toda pessoa tem o direito de reivindicar não somente que qualquer restrição a sua liberdade ou propriedade ocorra rigorosamente consoante os ditames legais (judicial process), senão sobretudo que o legislador observe o valor de justiça também no momento da construção dessas normas [ou dos seus atos] , de tal modo a impedir-lhe que crie um arbitrário e injusto conjunto normativo (substantive process). (…) significado essencial do substantive process of law (aspecto material) previsto no art. 5.º da CF consiste em que todos os atos públicos devem ser regidos pela razoabilidade e proporcionalidade, incluindo-se primordialmente a lei [ou qualquer outro ato emanado do poder legislativo], que não pode limitar ou privar o indivíduo dos seus direitos fundamentais sem que haja motivo justo, sem que exista razão substancial” (GOMES, Luiz Flávio. Juizados Criminais Federais, seus reflexos nos juizados especiais e outros estudos. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2002, p. 133/135).

Nunca é demais dizer que há doutrina exemplar que refuta até mesmo a discricionariedade do poder administrativo disciplinar, ou, ao menos, seu excesso, posto que incoerente com pilares muito mais impactantes à segurança jurídica:

“Convém insistir que o Estado tem a obrigação legal de exercer a sua força coercitiva para manter a disciplina no seu corpo diretivo em toda sua atividade funcional, porém insistimos, dentro desta obrigatoriedade legal, jamais poderá haver um laivo sequer de arbitrariedade pessoal ou diluída, porque, então, ela constituiria, inegavelmente, flagrante lesão de direito. É tão grande e tão importante esta obrigatoriedade do Estado em exercer o seu poder discricionário, que ela própria como que justifica e explica a existência concisa e concreta do direito administrativo disciplinar.” (LUZ, Egberto Maia. Direito Administrativo Disciplinar. 4. ed. São Paulo: Edições Profissionais, 2002. p. 64-5).

Também o próprio Egrégio Conselho Federal da OAB decide, reiteradamente, que o indeferimento de medida pleiteada sem fundamentação por parte do órgão competente consiste em patente cerceamento de defesa, que redunda na nulidade do ato atacado e de todos os posteriormente praticados:

RECURSO N. 49.0000.2015.007570-4/SCA-PTU. Rectes: A.H.Q.A., M.V.Q.A. e N.A. (Advs: Alessandro Henrique Quessada Apolinário OAB/SP 175995-B, Marcos Vinicius Quessada Apolinário OAB/SP 164723 e Natalino Apolinário OAB/SP 46122). Recdo: Conselho Seccional da OAB/São Paulo. Relator: Conselheiro Federal Elton Sadi Fülber (RO). EMENTA N. 036/2016/SCA-PTU. Recurso ao Conselho Federal. Indeferimento de testemunhas arroladas oportuno tempore pelos recorrentes. Ausência de fundamentação. Cerceamento de defesa. Nulidade processual reconhecida. Prescrição da pretensão punitiva, decorrente da anulação dos atos processuais. Precedentes. 1) O indeferimento de produção de prova testemunhal deve ser fundamentado, sob pena de violação à ampla defesa e ao contraditório, não sendo permitido ao julgador escolher quais as testemunhas que serão ouvidas e as que serão rejeitadas. 2) Reconhecida a violação à ampla defesa e ao contraditório, e anulado o feito desde o despacho de indeferimento de suas testemunhas, sem fundamentação, a última causa válida de interrupção do curso da prescrição passa a ser as notificações iniciais, decorrendo, desde então, lapso temporal superior a 05 (cinco) anos sem a prolação de decisão condenatória recorrível por órgão julgador da OAB, devendo ser, consequentemente, declarada extinta a punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva. 3) Recurso parcialmente provido, para anular o feito desde o despacho de indeferimento da produção de prova testemunhal e, consequentemente, de ofício, declarar extinta a punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva. Acórdão: Vistos, relatados e discutidos os autos do processo em referência, acordam os membros da Primeira Turma da Segunda Câmara do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, observado o quorum exigido no art. 92 do Regulamento Geral, por unanimidade, em acolher o voto do relator, parte integrante deste, conhecendo e dando parcial provimento ao recurso. Brasília, 11 de abril de 2016. Carlos Roberto Siqueira Castro, Presidente. Elton Sadi Fulber, Relator. (DOU, S.1, 14.04.2016, p. 98).

Todo o raciocínio exposto neste artigo se presta a direcionar o leitor a uma única conclusão: a amplitude de defesa não é um favor que se recebe do órgão acusador, mas um dever a ele legalmente imposto e uma garantia do acusado, cuja ofensa enseja o manejo dos competentes recursos administrativos e judiciais.

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